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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças v.11 n.2 Lisboa  2010

 

Adversidade na gravidez: Um estudo comparativo da adaptação de grávidas infectadas pelo VIH e grávidas sem risco médico associado

 

Marco Pereira & Maria Cristina Canavarro

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal. Unidade de Intervenção Psicológica do Departamento de Medicina Materno­Fetal dos Hospitais da Universidade de Coimbra, Portugal.

Contactar para E­mail: marcopereira@fpce.uc.pt

 

Resumo

Em Portugal, as mulheres representam cerca de 25% dos indivíduos que vivem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). Considerando que a maioria destas mulheres se encontra em idade reprodutiva (aproximadamente 75%), a transição para a maternidade tem assumido uma importância crescente. Numa amostra composta por 47 grávidas infectadas pelo VIH e 51 grávidas sem risco médico associado, a adaptação à gravidez foi avaliada considerando os seguintes indicadores: percepção de stresse, sintomatologia psicopatológica, reactividade emocional e qualidade de vida (QdV). Os resultados deste estudo apontam para a existência de maiores dificuldades de adaptação entre as grávidas seropositivas (particularmente as diagnosticadas durante a gravidez), que reportam, comparativamente às grávidas sem risco médico associado, níveis mais elevados de stresse, sintomatologia psicopatológica e reactividade emocional negativa e menor QdV. Os resultados mostram ainda que a adaptação à gravidez é marcada por uma maior ambivalência entre as mulheres seropositivas. Estes resultados poderão ter importantes implicações clínicas para a intervenção psicológica junto das mulheres infectadas pelo VIH. Torna­se central para os técnicos de saúde mental e de outras áreas médicas conhecer mais sobre as dinâmicas psicológicas quando envolvidas, em simultâneo, duas situações indutoras de stresse: ter um filho e a possibilidade de morte antecipada.

Palavras­chave: Adaptação; gravidez; infecção por VIH.

 

Adversity in pregnancy: A comparative study between HIV-Positive pregnant women and pregnant women without associated medical condition

Abstract

In Portugal, about 25% of people living with Human Immunodeficiency Virus (HIV) are women. Because the majority of HIV­infected women are of reproductive age (about 75%), the issue of transition to motherhood is a matter of greater importance. In a sample of 47 HIV­pregnant women and 51 pregnant women without medical condition, the adaptation to pregnancy was assessed considering the following indicators: perceived stress, psychological symptoms, emotional reactivity, and quality of life. The results of the current study showed that HIV­infected women experienced more difficulties in adaptation to pregnancy. This group reported, comparatively to the pregnant women without associated medical risk, higher stress, more psychopathology, more negative emotional reactivity, and lower quality of life. Globally, the results of this study show a higher ambivalence in the adaptation to pregnancy among HIV­positive women. Among HIV­positive, women diagnosed during the current pregnancy report more adaptation difficulties. These findings may also have clinical implications for the psychological intervention of HIV­infected women. It is important for mental health professionals and other medical fields to know more about women’s psychological dynamics when involved in two very stressful concomitant situations: giving birth and possibility of an anticipated death.

Keywords: Adaptation; HIV infection; Pregnancy

 

Na literatura sobre Psicologia da Saúde da mulher, o discurso predominante sobre a gravidez posiciona-a como um acontecimento biológico e médico (Woollett & Marshall, 1997) e associa­a directamente ao estado de saúde. Este discurso, privilegiado nas investigações iniciais sobre gravidez, deu lugar a um outro, o qual tem subjacente um modelo biopsicossocial que integra, simultaneamente, os factores biológicos, psicológicos, sociais e culturais, interagindo de uma forma concertada e determinando a adaptação da mulher à gravidez. Na linha do mencionado por Antonucci e Milkus (1988), trata-se de um acontecimento muito mais complexo que um acto puramente médico. Neste sentido, podemos fazer uma leitura do processo de gravidez enquanto fenómeno psicológico e, mais especificamente, enquanto fenómeno psicologicamente exigente.

Deste ponto de vista, gravidez e maternidade constituem processos dinâmicos de construção e desenvolvimento e são períodos de desequilíbrio e adaptação, mas também, por excelência, de reorganização, crescimento e enriquecimento pessoais (Canavarro, 2001). O estudo psicológico da gravidez abrange uma vasta constelação de aspectos, desde a contracepção aos factores psicológicos relacionados com o nascimento, passando pela auto­definição e pela transição para a maternidade (Ruble, Brooks­Gunn, Fleming, Fitzmaurice, Stangor, & Deutsch, 1990), ou mesmo pela adaptação durante gravidezes definidas como de alto risco médico (Levy­Shiff, Lerman, Har­Even, & Hod, 2002). A este propósito, distinguem-se dois tipos de risco: o risco médico, associado a patologias físicas que emergem ou se agravam durante a gravidez, podendo vir a ter consequências na saúde da mulher e/ou na do feto, bem como a interferir no parto; e o risco psicológico, que remete para o plano da vivência da gravidez em termos internos (desejos, fantasias, integração num projecto de maternidade) (Correia, 2005). No caso da infecção pelo VIH, os riscos médico e psicológico podem ser concorrentes. A convergência e a conjugação de ambos os riscos poderão perspectivar um quadro mais complexo, e seguramente mais exigente, na adaptação à gravidez/maternidade.

A gravidez como período de transição na vida de uma mulher tem sido relevantemente associada ao seu estado emocional e psicológico (Lee, 2000), e os estudos empíricos actuais sugerem que as ramificações dos stressores psicológicos na gravidez podem ser constantes (Jomeen, 2004). Vários aspectos psicológicos têm sido associados à gravidez, em particular a ansiedade (Conde & Figueiredo, 2003; Gross, 2000; Jomeen, 2004) e a depressão (Figueiredo, 2000; Jomeen, 2004), cuja presença pode implicar um impacto negativo na adaptação da mulher à gravidez e, extensivamente, nas adaptações subsequentes. Embora o estado psicológico das grávidas seja tradicionalmente caracterizado em termos dos indicadores supracitados, Jomeen (2004) alerta que o estado psicológico durante a gravidez não pode ser definido num enquadramento unidimensional, devendo incluir uma abordagem compreensiva de todas as dimensões que contribuem para o humor e para o estado mental das mulheres durante este período, onde se incluem, para além das referidas, auto-estima, controlo, sono e qualidade de vida (QdV).

O nascimento de um filho está associado a mudanças de variadas naturezas e, como mudança que representa, pode implicar stresse (Boss, 1988; Canavarro, 2001). Este processo compreende um vasto espectro de mudanças biológicas, psicológicas e interpessoais e representa um desafio à capacidade de adaptação da mulher, do casal e da família, comportando muitas vezes riscos acrescidos. Se uma gravidez que decorre de acordo com os parâmetros habituais implica mudança e necessidade de adaptação, as gravidezes que surgem em contextos de doença, ou nas circunstâncias em que o diagnóstico da doença (e.g., infecção pelo VIH) é realizado após a ocorrência de gravidez, podem implicar maior stresse e, por conseguinte, na generalidade dos casos, maiores exigências de adaptação.

Nas especificidades da infecção pelo VIH entre as mulheres, precisamente pelas características inerentes às diferenças de género, enquadra­se também, e naturalmente, a questão da gravidez. Entre todas as questões que respeitam à infecção pelo VIH na população feminina, as que se referem ao comportamento reprodutivo são as mais específicas e as que mais têm sido estudadas empiricamente. Com efeito, com o aumento do número de mulheres infectadas pelo VIH em Portugal, cerca de 75% das quais em idade reprodutiva (Departamento de Doenças Infecciosas ­Unidade de Referência e Vigilância Epidemiológica, 2009), e a preocupação crescente acerca da transmissão vertical, a gravidez no contexto da infecção pelo VIH tem-se tornado num foco de grande atenção e de investigação. Por outro lado, sabemos que a conceptualização da SIDA está a mudar de uma perspectiva de morte para uma perspectiva de vida (Rossi, Fonsechi-Carvasan, Makuch, Amaral, & Bahamondes, 2005) e, desta forma, a criar novas preocupações reprodutivas e opções para os casais infectados, que experienciam actualmente uma menor pressão da comunidade e dos profissionais de saúde.

As consequências de um diagnóstico de seropositividade para o VIH para uma mulher em idade fértil podem ser particularmente intensas e psicologicamente exigentes. Se o nascimento de um filho implica grandes mudanças e tem um enorme impacto na vida pessoal e familiar dos indivíduos, o cruzamento destes contextos releva a evidente contradição que emerge entre os conceitos que ainda se associam à gravidez (e.g., nascimento; vida) e à infecção por VIH (e.g., doença incurável; morte), inequivocamente demonstrada na afirmação de Sandelowski e Barroso (2003a) de que “o diagnóstico da infecção VIH – uma ameaça mortal – frequentemente coincide com o diagnóstico de gravidez, uma afirmação de vida” (p. 475). Estamos, portanto, e como refere Correia (2005), na presença de um contexto, físico e emocional, onde uma coexistência paradoxal entre vida e morte se mistura com emoções complexas e contraditórias.

Assim, percebe­se que a maternidade no contexto da seropositividade para o VIH se encontre repleta de dilemas e desafios para as mulheres (Kotchick et al., 1997; Segurado & Paiva, 2007; Sherr, 2005; Tompkins, Henker, Whaler, Axelrod, & Comer, 1999), que podem ser confrontadas com exigências adicionais directa ou indirectamente associadas ao VIH, incluindo a revelação de seropositividade, o teste VIH do(s) filho(s) e as necessidades e exigências quotidianas de adesão aos regimes terapêuticos. Contudo, e como frisam Sandelowski e Barroso (2003b), estas mulheres assemelham-se à maioria das mulheres e mães “no seu desejo de maternidade, nas oportunidades e constrangimentos que percebem como inerentes à maternidade, e no papel que desempenham enquanto mães” (p. 162).

Embora poucos estudos empíricos se tenham debruçado sobre a vivência psicológica da gravidez num contexto de seropositividade, a literatura sobre o impacto do diagnóstico da infecção pelo VIH tem alertado para a variedade de reacções emocionais, quer normais quer patológicas, associadas a este diagnóstico (e.g., American Psychological Association, 2003; Gallego, Gordillo, & Catalan, 2000; Gordillo, 1999), mas também para a teia complexa de decisões que emergem desta intersecção (Kobayashi, 2001).

Dada a escassez de estudos empíricos (nos contextos nacional e internacional) que se tenham debruçado sobre a adaptação psicológica à gravidez nas mulheres infectadas pelo VIH, entendemos que este estudo se afigura como particularmente útil. Ainda que exista muita produção científica dentro desta temática, a sua grande maioria centra-se nos aspectos clínicos e, essencialmente, nas questões que se prendem com a transmissão vertical do VIH e nas estratégias para a sua prevenção. Escasseiam, porém, e particularmente no contexto nacional, estudos que se centrem nas vivências psicológicas da gravidez e da transição para a maternidade entre as mulheres infectadas por este vírus. Num estudo exploratório sobre adaptação à gravidez em mulheres seropositivas, Pereira e Canavarro (no prelo) confirmaram uma particular ambivalência nas emoções avaliadas pela Emotional Assessment Scale (EAS), em particular, Felicidade, Ansiedade e Tristeza, a presença de sintomatologia psicopatológica, significativamente diferente dos valores da população geral, e níveis moderados de stresse.

O presente estudo tem como principal objectivo estudar a adaptação à gravidez em mulheres infectadas pelo VIH. Assumindo a essência antagónica destas duas situações, hipotetizamos que as grávidas infectadas apresentarão maiores dificuldades na adaptação à gravidez do que as grávidas sem risco médico associado. De forma mais específica, serão as grávidas cujo diagnóstico coincidiu com a actual gravidez quem apresentará dificuldades mais acentuadas.

 

MÉTODO

Participantes

O presente estudo empírico baseia-se nas respostas de dois grupos. O grupo clínico (GC­VIH) é composto por 47 mulheres grávidas infectadas pelo VIH, com uma média (M) de idade de 28.74 anos e desvio­padrão (DP) de 6.01 anos (Mínimo: 17; Máximo: 39). O grupo de controlo (GC) – grávidas sem condição médica de risco associada – é constituído por 51 mulheres com uma idade média de 29.53 anos e DP de 4.06 anos (Mínimo: 18; Máximo: 37). No Quadro 1, apresentam-se as características sociodemográficas dos dois grupos.   

 

Quadro 1 Características sociodemográficas da amostra

                   

 

A análise comparativa do GC­VIH e do GC não permitiu constatar a sua homogeneidade em todas as variáveis sociodemográficas consideradas. Nomeadamente, verificou-se que os dois grupos eram equivalentes em termos de idade média [t(96)= ­0.752; p = .454], mas não em termos de estado civil [χ2 (3) = 12.714; p = .013], habilitações literárias [χ2 (4) = 12.170; p = .016], nível socioeconómico [NSE; χ2 (2) = 9.989; p = .007] e situação profissional [χ2 (3) = 17.041; p = .001].

No que se prende com as características associadas à infecção por VIH, verificou-se que a principal circunstância conducente à realização do diagnóstico de infecção por VIH foi a gravidez. Vinte e duas (46.8%) mulheres tiveram conhecimento da sua infecção durante as rotinas da actual gravidez, 4.3% das mulheres tiveram conhecimento do seu estado serológico numa gravidez anterior, 31.9% das mulheres conheceram a sua seropositividade por rotina médica, 10.6% realizou o teste por iniciativa própria e 6.4% das mulheres referiram outra causa.

Das 47 grávidas que integram o grupo clínico, e no que se reporta às vias de transmissão, as relações heterossexuais foram a principal causa de infecção para a maioria das mulheres (63.8%). Oito (17%) mulheres contraíram a infecção devido a comportamentos associados à toxicodependência, uma (2.1%) refere contágio por transfusão e oito (17%) referem desconhecer a origem da infecção. Parece importante sublinhar a percentagem de casos que refere desconhecer a proveniência da infecção pelo VIH/SIDA, que foi de 17%. Na generalidade dos casos não foram especificados quaisquer factores de risco individuais, apontando como maior probabilidade a transmissão da infecção por via sexual. ~

 

Medidas

Perceived Stress Scale(PSS)

A PSS (Cohen, Kamarck, & Mermelstein, 1983) – Versão Portuguesa (VP) do Instituto de Prevenção do Stress e Saúde Ocupacional (Mota­Cardoso, Araújo, Ramos, Gonçalves, & Ramos, 2002) – é um instrumento de auto-resposta, composto por 10 itens, destinado a medir o grau em que as situações de vida da pessoa são percepcionadas como indutoras de stresse. Por outras palavras, a PSS quantifica o nível de stresse que cada indivíduo experimenta subjectivamente, num determinado momento. Cada pergunta tem cinco possibilidades de resposta, variando entre 0 (Nunca) e 4 (Com muita frequência). O sujeito deverá assinalar a resposta que melhor corresponde à forma como se tem sentido no último mês. A interpretação faz-se tendo em conta o valor total obtido na escala: quanto mais alto o valor, maior o grau de stresse percebido pelo indivíduo. O resultado da PSS é visto como um indicador de perturbação emocional (Mota Cardoso et al., 2002). Os autores não sugerem categorias ou pontos de corte específicos. Na presente amostra, o alfa de Cronbach para o total da escala foi de .84.

 

Brief Symptom Inventory(BSI)

O BSI (Derogatis, 1993; VP: Canavarro, 2007) é um inventário de auto­resposta constituído por 53 itens, onde o indivíduo deverá classificar o grau em que cada problema o afectou durante a última semana, numa escala com cinco possibilidades de resposta, desde Nunca (0) a Muitíssimas Vezes (4). O BSI avalia sintomatologia psicopatológica em termos de nove dimensões básicas de psicopatologia (Somatização, Obsessões­Compulsões, Sensibilidade Interpessoal, Depressão, Ansiedade, Hostilidade, Ansiedade Fóbica, Ideação Paranóide e Psicoticismo) e três índices globais: o Índice Geral de Sintomas (IGS), o Total de Sintomas Positivos (TSP) e o Índice de Sintomas Positivos (ISP). Este último índice é considerado por Canavarro (2007) o que melhor discrimina entre indivíduos da população geral e aqueles que apresentam perturbações emocionais. No presente estudo, o alfa de Cronbach foi de .96 para o total da escala e variou entre .60 (Ansiedade Fóbica) e .86 (Depressão) para as nove dimensões.

 

Emotional Assessment Scale(EAS)

A EAS (Carlson, Collins, Stewart, Porzelius, Nitz, & Lind, 1989; VP: Moura Ramos, 2006) tem como objectivo medir a reactividade emocional. A EAS é constituída por 24 itens, que correspondem a descrições de emoções consideradas fundamentais (Medo, Felicidade, Ansiedade, Culpa, Cólera, Surpresa e Tristeza), sendo especialmente útil na medida de níveis momentâneos e de mudança de emoções. A forma de medição utilizada para avaliar o grau de cada emoção é uma escala visual analógica, com valor mínimo igual a 0 (zero), localizado no extremo esquerdo da escala e com a indicação O menos possível, e valor máximo igual a 100 (cem), localizado no extremo direito e com a indicação O mais possível, na qual o sujeito deverá colocar a sua resposta. Para cada uma das emoções descritas, o indivíduo deverá posicionar-se no local que lhe parecer mais adequado para representar o modo como se sente no momento actual. Esta escala apresentou boas características psicométricas no estudo original (Carlson et al., 1989), bem como na versão portuguesa (Moura Ramos, 2006). O alfa de Cronbach, na presente amostra, variou entre .68 (Surpresa) e .81 (Felicidade).

 

World Health Organization Quality of Life (WHOQOL­Bref)

O WHOQOL­Bref (World Health Organization Quality of Life Group – WHO­QOL Group, 1998) é um instrumento de avaliação da qualidade de vida, composto por 26 itens e que se encontra organizado em quatro domínios: Físico, Psicológico, Relações sociais e Ambiente. Cada faceta é avaliada através de uma pergunta, correspondente a um item, à excepção da faceta sobre QdV em geral, que é avaliada através de dois itens, um correspondente à QdV em geral e outro sobre a percepção geral da saúde. Neste sentido, o WHOQOL­Bref avalia 24 facetas específicas (Canavarro et al., 2006).

Este instrumento apresentou valores aceitáveis de consistência interna no estudo internacional (Skevington, Lotfy, & O’Connell, 2004; WHOQOL Group, 1998), bem como no estudo de validação da versão em Português de Portugal (Vaz Serra et al., 2006). No presente estudo, o alfa de Cronbach foi de .90 para o total dos itens e oscilou, relativamente aos domínios, entre .72 (Psicológico) e .80 (Físico).

 

 Ficha de dados sociodemográficos e grelhas clínicas

Do protocolo de avaliação faziam parte uma ficha de dados sociodemográficos e duas grelhas de informação clínica. Uma de natureza obstétrica, incidindo sobre os antecedentes obstétricos e a actual gravidez, e uma segunda relativa à história médica da infecção por VIH, compreendendo dados sobre a infecção, nomeadamente: duração da infecção; tempo de conhecimento da infecção; contexto de realização do teste VIH; categoria de transmissão; condição serológica do companheiro; e, no caso de ter filhos anteriores à actual gravidez, dados sobre o conhecimento da infecção no momento em que engravidou e a situação médica actual do(s) filho(s).

 

Procedimentos

Os dois grupos de grávidas foram recrutados nos serviços de Obstetrícia da Maternidade Dr. Daniel de Matos (MDM) – Área de Gestão Integrada de Saúde Materno Fetal dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e na Maternidade Dr. Alfredo da Costa (MAC; Lisboa). As mulheres foram avaliadas durante a gravidez e no pósparto (dois a quatro dias após o parto), reportando-se os dados que se apresentam no presente estudo ao momento da gravidez. A amostra foi constituída por conveniência.

Para a recolha de dados, foi feito previamente um pedido de colaboração voluntária no estudo, explicada a natureza e os objectivos do mesmo, garantida a confidencialidade e o anonimato das respostas aos questionários, e assinado o consentimento informado, previamente aprovado pela Comissão de Ética do Conselho de Administração dos HUC e pela Comissão de Ética da MAC.

 

Tratamento estatístico dos dados

No presente estudo, foi utilizada estatística descritiva e inferencial. Numa primeira fase, para a caracterização sociodemográfica da amostra e dos diferentes grupos que a compõem, utilizaram-se estatísticas descritivas: frequências relativas, média e desvio­padrão. Com o objectivo de averiguar a existência de diferenças entre os dois grupos em estudo, recorreu-se à estatística inferencial. Tendo em conta que os grupos clínico e de controlo se diferenciavam entre si no que respeita aos indicadores socioeconómicos, optou-se por utilizar testes estatísticos controlando os efeitos da variável NSE, que se entendeu congregar as informações das outras variáveis onde se registou a não homogeneidade das amostras (habilitações literárias e situação profissional). Neste sentido, o estudo de comparação da adaptação à gravidez dos dois grupos em estudo considerou o NSE como covariável. Concretamente, nas análises referidas, os indicadores de adaptação foram considerados variáveis critério (ou dependentes) e a existência de infecção VIH determinou a criação dos dois grupos, que constituíram os níveis da variável independente. Justificou-se, desta forma, o recurso à análise univariada da covariância (ANCOVA), em alternativa à simples análise univariada da variância (ANOVA), com o objectivo de remover dos resultados a variabilidade imputável ao NSE. Na comparação entre dois subgrupos do grupo clínico (diagnóstico na actual gravidez GDAG vs. diagnóstico prévio à actual gravidez GDPAG) e o GC, optou­se por testes não­paramétricos, nomeadamente o Teste de Kruskall­Wallis. Na existência de diferenças significativas, as comparações post hoc tiveram em conta a correcção de Bonferroni (ajustada para .017).

Para a análise estatística dos dados, utilizou­se a versão 15.0 do programa SPSS (StatisticalPackagefor the SocialSciences). Níveis de significação inferiores a .05 (p < .05) foram considerados como indicando diferenças (resultados) estatisticamente significativas.

 

RESULTADOS

Em primeiro lugar, procurou-se caracterizar a adaptação simultânea à gravidez e à doença das mulheres infectadas pelo VIH em termos de quatro possíveis indicadores de ajustamento: percepção de stresse, sintomatologia psicopatológica, reactividade emocional e QdV. Para tal, procedeu-se à comparação, nestes mesmos indicadores, do GC­VIH com o GC.

 

Percepção de stresse

Relativamente à percepção de stresse, o GC­VIH apresentou um score médio de 18.70 (DP = 7.01) e o GC de 16.76 (DP = 7.19). Quando comparados os dois grupos, o GC­VIH percepciona maior stresse, porém a diferença não se revelou estatisticamente significativa [F(1, 91) = 0.004; p =.947].

Quando considerada a divisão do grupo clínico, a comparação (GDAG vs. GDPAG vs. GC) não se mostrou estatisticamente significativa [χ2 = 2.069; p = .355], ainda que o GDAG tenha reportado Ms superiores de percepção de stresse (20.15 vs. 17.50 vs. 16.76).

 

Sintomatologia psicopatológica

Em relação à sintomatologia psicopatológica, em ambos os grupos não se verificaram valores particularmente elevados nas nove dimensões e nos três índices globais. Globalmente, as grávidas do GC­VIH reportam valores mais elevados em todas as dimensões, excepto nas dimensões Obsessões­Compulsões e Ansiedade Fóbica. No que se prende com os índices globais, o GC­VIH apresenta também valores superiores. Relativamente a estes últimos, o ISP aproximou-se do valor 1.7, que constitui o ponto de corte do BSI (Canavarro, 2007), acima do qual existe uma maior probabilidade de encontrar pessoas perturbadas emocionalmente.

A comparação entre os grupos, controlando o efeito imputável ao NSE, não mostrou a existência de diferenças nas nove dimensões de psicopatologia, ainda que na Somatização se tenha aproximado do limiar da significância estatística [F(1, 92) = 3.277; p = .074; η2 = .034]. Em relação aos três índices globais, registou-se uma diferença estatisticamente significativa no ISP [F(1, 91) = 8.914; p = .004; η2 = .088].

A análise comparativa considerando os três grupos revelou diferenças significativas na Depressão 2 = 7.589; p = .022] e no ISP [χ2 = 9.113; p = .011]. A aplicação da correcção de Bonferroni (ajustada para p < .017) revelou apenas diferenças significativas na comparação entre o GDAG e o GC, em relação à Depressão (1.238 vs. 0.572; p = .008) e ao ISP (1.813 vs. 1.412; p = .002), apresentando o primeiro grupo valores mais elevados.

 

Reactividade emocional

No Quadro 2, apresentamos os resultados obtidos referentes à reactividade emocional dos dois grupos de grávidas. Nesta análise, optou­se por apresentar as emoções do GC­VIH por ordem decrescente de intensidade, de forma a ilustrar as emoções mais referidas neste momento. Verificou­se que a emoção prevalente no GC­VIH foi a Felicidade (Mínimo: 0.00; Máximo: 91.67). Igualmente relevantes são as pontuações das emoções Ansiedade (Mínimo: 5.25; Máximo: 92.25) e Tristeza (Mínimo: 2.50; Máximo: 92.50) e, em particular, os elevados DPs registados nestas emoções que, ao denotarem grande variabilidade de respostas, poderão traduzir a ambivalência emocional sentida por estas mulheres.

 

Quadro 2 Comparação da reactividade emocionalentre o GC­VIH e o GC

 

Relativamente a este indicador, a assimetria entre os grupos é claramente ilustrada pelos dados apresentados no Quadro 2, onde se pode verificar que o GC­VIH apresenta maior reactividade emocional, sobretudo negativa. A ANCOVA revelou a existência de diferenças estatisticamente significativas para todas as emoções com excepção da Felicidade (p = .465), tendo neste caso o GC valores mais elevados. O nível de significância foi mais elevado na comparação da emoção Cólera.

Considerando os três grupos, registaram-se diferenças na comparação entre o GDAG e o GC nas emoções Tristeza (46.15 vs. 18.50; p = .010), Ansiedade (52.36 vs. 34.49; p = .004), Medo (36.65 vs. 15.54; p = .017), Culpa (33.45 vs. 16.74; p = .005) e Cólera (34.37 vs. 14.44; p = .005). A comparação entre o GDPAG e o GC revelou apenas uma diferença na emoção Medo (31.69 vs. 15.54; p = .001).

 

Qualidade de vida

Pode-se verificar no Quadro 3 que, no grupo de grávidas do GC­VIH, o domínio de QdV mais pontuado foi o Psicológico. Pelo contrário, entre os domínios mais fragilizados encontra-se o domínio Ambiente. Na Faceta geral, o resultado situou­se ligeiramente acima do ponto médio do instrumento (50).

 

Quadro 3 Comparação dos domínios de qualidade de vida entre o GC­VIH e o GC

 

Uma vez controlado o efeito do NSE, apenas na Faceta geral do WHOQOL­Bref se encontrou uma diferença estatisticamente significativa (p < .001), que demonstra a existência de menor satisfação com o estado de saúde e menor percepção global da QdV entre as grávidas seropositivas. De forma geral, e pela leitura do mesmo quadro, pode-se observar que as grávidas do GC­VIH reportam menor QdV em todos os domínios, comparativamente às grávidas do GC.

Considerando os três grupos de comparação, o teste de Kruskall­Wallis revelou a existência de diferenças na Faceta geral 2 = 21.724; p = .001] e nos domínios Psicológico 2 = 6.836; p = .033] e Relações sociais 2 = 9.677; p = .008], e aproximou-se do limiar de significância estatística no domínio Ambiente 2 = 5.482; p = .065]. As comparações a posteriori mostraram diferenças significativas entre o GDAG e o GC na Faceta geral (46.88 vs. 76.86; p = .001) e nos domínios Relações sociais (67.36 vs. 76.95; p = .017) e Ambiente (59.11 vs. 68.62; p = .017). Entre o GDPAG e o GC, verificaram-se diferenças na Faceta geral (62.50 vs. 76.86; p = .002) e no domínio Relações sociais (66.20 vs. 76.95; p = .012).

Ainda neste âmbito, procurámos comparar os resultados para as 24 facetas específicas do WHOQOL-Bref. No conjunto das 24 facetas, as grávidas do GC­VIH revelam pior QdV em 19 facetas. No total, apenas se registaram três diferenças estatisticamente significativas: na faceta Energia e fadiga, o GC­VIH apresentou melhores resultados [F(1, 73) = 6.158; p = .015], ao passo que nas facetas Ambiente no lar [F(1, 73) = 4.701; p = .033] e Sentimentos negativos [F(1, 73) = 6.121; p = .016] os melhores scores registaram-se entre o GC. Na faceta Actividade sexual, mais elevada no GC, a diferença aproximou-se do limiar de significância estatística (p = .055).

Adicionalmente, podemos referir que, tendo em conta que os valores para cada faceta variam entre 0 e 5, entre as facetas específicas mais pontuadas pelo GC­VIH encontram-se os Sentimentos positivos (M = 4.23), a Dependência de medicação ou tratamentos (M = 4.07), os Cuidados de saúde e sociais: disponibilidade e qualidade (M = 4.03), bem como os aspectos ligados à Espiritualidade (M = 4.03). No GC, as facetas específicas com Ms mais elevadas foram os Sentimentos positivos (M = 4.57), Espiritualidade (M = 4.45), Dependência de medicação ou tratamentos (M = 4.38), Ambiente no lar (M = 4.17) e as Relações pessoais (M = 4.15). No que se prende com as facetas onde se registou menor percepção de QdV, no GC­VIH, as facetas menos pontuadas foram os Recursos económicos (a única com uma média inferior a 3 – M = 2.97) e os Sentimentos negativos (M = 3.00). Já no GC, as facetas com menor pontuação foram a Participação e/ou oportunidades de recreio elazer (M = 3.06) e os Recursos económicos (M = 3.38).

 

DISCUSSÃO

Ao longo do presente trabalho, procurou-se estudar o modo como as grávidas se adaptam à convergência de gravidez e infecção VIH/SIDA. Os modelos teóricos actuais consideram a gravidez e o nascimento de um filho um marco desenvolvimental no percurso de um indivíduo ou de uma família, implicando mudanças e reorganizações diversas e a vários níveis (Canavarro, 2001), e comportando exigências acrescidas de adaptação. Pretendeu­se, assim, conhecer a forma como a grávida se adapta à gravidez em termos de quatro indicadores de adaptação pessoal: percepção de stresse, sintomatologia psicopatológica, reactividade emocional e QdV.

Em síntese, do presente estudo, salientam-se os seguintes resultados: (1) verificou-se a existência de um nível de stresse percebido moderado no GC­VIH, sendo superior mas não significativamente diferente do GC; (2) globalmente, os resultados são indicadores de ausência de sintomatologia psicopatológica em ambos os grupos de estudo. Com excepção das dimensões Obsessões­Compulsões e Ansiedade Fóbica, nas restantes dimensões e nos três índices globais, as grávidas infectadas reportaram valores mais elevados, sendo que a única diferença significativa se registou no ISP. Neste índice, o GC­VIH apresentou um valor próximo do ponto de corte do BSI (Canavarro, 2007), acima do qual existe uma maior probabilidade de encontrar pessoas perturbadas emocionalmente; (3) os resultados apontam para uma reactividade emocional negativa aumentada entre as grávidas infectadas, ainda que a emoção prevalente tenha sido a Felicidade. A comparação com o GC relevou diferenças em todas as emoções, com excepção precisamente da emoção Felicidade; (4) finalmente, o GC­VIH apresentou bons resultados nos diferentes domínios de QdV, referindo valores mais baixos no domínio Ambiente e na Faceta geral, que avalia a satisfação global com a QdV e a percepção geral de saúde. Estes resultados são inferiores aos registados no GC. A única diferença significativa entre os grupos registou-se na Faceta geral. No conjunto das 24 facetas específicas, o GC­VIH revelou pior QdV em 19 delas.

De acordo com o hipotetizado, foram encontradas maiores dificuldades de adaptação à gravidez no grupo de mulheres infectadas pelo VIH do que no grupo sem patologia associada, especialmente pelas dificuldades inerentes à adaptação à gravidez (associada à vida), que concorrem com as exigências da adaptação a uma doença que, pela sua natureza irreversível, assume contornos aproximados à morte. Em termos gerais, os resultados neste momento de avaliação confirmaram as nossas suposições iniciais. Tomados como um todo, estes dados sugerem os efeitos duais (e paradoxais) da maternidade no contexto da infecção por VIH. Esperava-se uma maior reactividade emocional no GC­VIH e, em particular, uma maior intensidade nas emoções de valência oposta. Com efeito, neste grupo, ainda que a Felicidade se constituísse como a emoção mais sentida pelas grávidas, as emoções Ansiedade e Tristeza mostraram-se igualmente representativas deste momento. Os próprios DPs registados para as sete emoções parecem reflectir a ambivalência emocional sentida pelas grávidas seropositivas (Carney, 2003; Correia, 2005; Pinto, 1995). Neste contexto específico, estes resultados estão igualmente de acordo com os obtidos no estudo exploratório de Pereira e Canavarro (no prelo), nomeadamente no que se refere às emoções mais sentidas pelas grávidas seropositivas para o VIH durante o segundo trimestre de gravidez.

Nas comparações adicionais, e considerando três grupos (GDAG, GDPAG e GC), as grávidas infectadas pelo VIH diagnosticadas durante a actual gravidez reportaram maiores dificuldades de adaptação face ao GC, sem que as diferenças tivessem sido significativas na comparação com o GDPAG. Em termos globais, os valores nos diferentes indicadores não demonstram uma adaptação particularmente dramática à gravidez, o que está de acordo com a observação de Figueiredo (2001), de que a gravidez, apesar de todas as transformações físicas e psicológicas que acarreta, não tem geralmente implicações graves para a saúde mental da mãe. Entre as mulheres infectadas pelo VIH, os resultados encontrados podem estar associados à existência de um evitamento da própria doença. Com efeito, a literatura têm sublinhado o papel da negação do diagnóstico (Bedimo, Bessinger, & Kissinger, 1998) que, enquanto mecanismo de defesa, é frequentemente utilizada numa primeira fase do processo de coping quando uma mulher tem conhecimento de que está infectada pelo VIH.

Diversos aspectos como perturbações minor da gravidez (Gross, 2000), acontecimentos relacionados com o parto e aspectos físicos e sociais da gravidez têm promovido um conhecimento crescente que pode ter importantes implicações na adaptação psicológica da mulher à gravidez e à maternidade (Jomeen, 2004). Por esta razão, a identificação do stresse psicológico materno no decurso da gravidez e nos meses subsequentes ao parto constitui um argumento sustentado nas recomendações de saúde pública para os cuidados pré­natais. Adicionalmente, a consideração de parâmetros mais positivos, como por exemplo a QdV, constitui uma mais­ valia na avaliação da adaptação na transição para a maternidade num enquadramento multidimensional (Jomeen, 2004).

Os objectivos centrais do presente estudo têm subjacente uma perspectiva de intervenção, pelo que não se pode deixar de focar as implicações práticas (clínicas) dos dados obtidos em particular, no âmbito da prevenção e da intervenção psicológica neste momento do ciclo de vida, junto quer da mulher, quer do casal e da família.

A literatura têm fundamentado a existência de uma proporção significativa de mães (ou novas mães) para quem o processo de transição para a maternidade coincide com um período indutor de stresse, em particular quando coexistem complicações de natureza médica e social, desfavoráveis a uma melhor adaptação materna, como é o caso da infecção pelo VIH. Neste sentido, e face aos resultados obtidos, a existência de um acompanhamento psicológico especializado pode constituir um factor crucial no processo de adaptação da mulher/casal ao período de gravidez, na medida em que pode promover uma melhor forma de lidar com situações mais adversas e, extensivamente, contribuir para a estabilidade emocional das grávidas e respectivos contextos adjacentes (e.g., cônjuge; família de origem; outros filhos, se existirem; redes de apoio social), cumprindo igualmente o objectivo de potenciar um desenvolvimento saudável próprio e dos seus filhos (Canavarro, 2001).

A experiência das mães seropositivas providencia um paradigma para os psicólogos da saúde na compreensão dos efeitos de uma doença crónica, fatal e estigmatizante na saúde física e psicológica das mulheres durante os períodos de gravidez e pós­parto. Durante estes períodos, as mulheres experienciam uma ampla gama de stressores, e não apenas os específicos à gravidez ou da infecção por VIH, mas também os específicos desta intersecção que acrescem, com frequência, à falta de recursos, barreiras no acesso aos cuidados de saúde, medo da revelação do diagnóstico e perdas interpessoais (Pereira, 2002), e que se associam ao risco de depressão no primeiro ano após o parto nas mulheres seropositivas (Miles, Burchinal, Holditch­Davis, Wasilewski, & Christian, 1997).

Parece de extrema relevância a referência ao facto de que a gravidez surge como o contexto mais frequente para realização do teste de VIH. Com efeito, em mais de 50% dos casos, o diagnóstico de seropositividade para o VIH foi efectuado durante a gravidez. Este aspecto cria desafios acrescidos para as equipas de cuidados de saúde e encerra, naturalmente, importantes implicações clínicas, quer em termos médicos (dada a necessidade de pôr em marcha todos os procedimentos essenciais à prevenção da transmissão vertical), quer em termos da intervenção psicológica neste domínio particular. Neste âmbito, enquadra-se naturalmente a importância da rotina pré­natal.

A rotina pré­natal tem sido entendida como um componente insubstituível da saúde materna e do desenvolvimento do bebé. O acesso atempado é seguramente essencial para desencadear todos os procedimentos implicados na prevenção da transmissão vertical. Neste sentido, sublinha­se a importância desta rotina no contexto da infecção VIH, que encerra diversas vantagens (e.g., Boyd, Simpson, Hart, Johnstone, & Goldberg, 1999; Joo, Carmack, Garcia­Buñuel, & Kelly, 2000; Mercey, 1998; Pai, Tulsky, Cohan, Colford Jr, & Reingold, 2007). Esta rotina assume-se como central, concretizando-se na necessidade, cada vez mais generalizada, de iniciar atempadamente a terapêutica anti­retrovírica, bem como forma de reduzir a possibilidade de transmissão horizontal e, extensivamente, a possibilidade de reinfecção.

Face ao exposto, reforça­se assim a importância do rastreio (necessariamente consentido) da infecção a todas as grávidas, para que possam ser tomadas medidas necessárias para prevenir a transmissão da infecção aos filhos. Alguns autores (e.g., Minkoff, 1998; Sterk, 1998) chamam a atenção para o facto de, neste contexto, não se ignorarem as mulheres não grávidas, o que nós subscrevemos. Como advogam o American College of Obstetrics and Gynecology e o Institute of Medicine, todas as mulheres em idade reprodutiva devem receber aconselhamento VIH pré­concepção e a todas as grávidas deve ser oferecido o teste VIH como parte integrante da rotina médica primária, independentemente dos factores de risco e da taxa de prevalência na comunidade. Em nosso entender, é essencial que os testes de pesquisa do VIH devam ser considerados prioridade não apenas nas mulheres grávidas, mas em todas as mulheres em idade fértil, equacionando ou não uma gravidez e independentemente da percepção de risco pessoal, na medida em que se tem verificado na literatura uma ausência de riscos individuais na maioria das mulheres infectadas (Puro, D’Ubaldo, Aloisi, & Ippolito, 1998), o que é, aliás, extensível ao grupo clínico do presente estudo. Na sequência do enunciado anteriormente, os planos de gravidez e maternidade devem, necessariamente, ser discutidos também com as mulheres não­grávidas infectadas, para que estas possam tomar decisões informadas e ponderadas. Em síntese, mais do que um procedimento de rotina dos cuidados pré­natais, o teste VIH deve constituir um procedimento fundamental a introduzir previamente à ocorrência (ou mesmo planeamento) de gravidez, designadamente nas intervenções ligadas aos cuidados pré­concepcionais.

No cômputo geral, a existência de infecção VIH e a concomitância de gravidez fomentam uma preocupação específica relativa à possibilidade de transmissão do vírus ao bebé. Esta preocupação é persistente, embora possa atenuar-se com o decurso da gravidez, face às intervenções actualmente disponíveis e à existência de um acompanhamento clínico regular. Sabendo que a transmissão mãe­filho é a principal modalidade de contaminação das crianças, o franco crescimento do número de mulheres infectadas em idade fértil por todo o mundo tem claras e preocupantes implicações no contexto reprodutivo. Apesar do cenário exposto, hoje sabe-se que a transmissão vertical do VIH é quase totalmente prevenível com uma combinação de intervenções profiláticas, entre as quais se diferenciam a terapia anti-retroviral durante a gravidez, o tipo de parto e a suspensão do aleitamento materno.

O presente estudo não está isento de limitações. Uma importante limitação respeita à escassez de estudos empíricos nesta área, ainda que esta limitação possa constituir um importante contributo deste trabalho. Como se referiu na introdução, a literatura científica sobre gravidez e infecção VIH, numa abordagem médica, e sobretudo no âmbito da prevenção da transmissão vertical é bastante extensa porém, não cobre os aspectos de natureza psicológica que sustentam este trabalho e dificulta a integração dos resultados encontrados. O recurso a referências (nacionais e internacionais) sobre a adaptação à gravidez e à transição para a parentalidade, em populações sem condições médicas associadas, ainda que não seja o preferível, tornou-se no possível. Outras limitações dizem respeito ao tamanho da amostra clínica e à natureza das variáveis avaliadas. Em primeiro lugar, uma amostra de maior dimensão poderia permitir o uso de estatísticas mais avançadas; em segundo lugar, o recurso a variáveis de adaptação relacional e a instrumentos mais específicos para a gravidez poderiam contribuir para uma análise mais completa da adaptação à gravidez de mulheres infectadas pelo VIH com diferentes percursos de infecção.

Em síntese, o contexto da infecção por VIH assume contornos de adversidade, mas pode ser resignificado e vivido como uma fonte potencial para a mudança e para novas oportunidades. É tarefa dos profissionais de saúde mental ajudar a criar estes significados mais adaptativos para lidar com a infecção. Gravidez e infecção por VIH assumem, por conseguinte, os contornos de um contexto de excelência para intervenção que, em nosso entender, necessariamente deverá contemplar a prevenção. Porém, uma melhor prevenção começa, assim o entendemos, com o planeamento familiar.

 

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Este trabalho recebeu apoio da FCT (SFRH/BD/19126/2004)

 

Recebido em 9 de Julho de 2009/ Aceite em 9 Outubro de 2010