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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

DEBATE

Onde Pereira vê hierarquias, eu proponho relações

A propósito da recensão de Victor Pereira sobre a minha obra Geração Europa? Um Estudo Sobre a Jovem Emigração Qualificada para França

 

João Teixeira Lopes*

*Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Departamento de Sociologia e Instituto de Sociologia, Via Panorâmica, s/n — 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: jmteixeiralopes@gmail.com

 

Uma recensão muito crítica de uma obra nossa é uma ocasião rara que não deve ser desperdiçada para entabularmos um diálogo crítico com um investigador e um público leitor mais ou menos especializado. Por isso, não hesitei em solicitar à direção da Análise Social a possibilidade de responder à recensão de Victor Pereira (2015) sobre o meu livro Geração Europa? Um Estudo sobre a Jovem Emigração Qualificada para França.

Curiosamente, o autor da recensão é historiador, o que não parece ter-lhe aguçado a prudência ao entrar na discussão sobre conceitos utilizados dentro de quadros de referência explicitamente sociológicos, como o de geração ou transições para a vida adulta. A isso, aliás, voltarei mais adiante. Note-se que não defendo qualquer espírito de coutada epistemológica, teórica ou metodológica. Apenas a necessidade de uma prudência acrescida quanto entramos em subcampos científicos com uma história e institucionalização próprias, um percurso de autonomia e uma acumulação de protocolos de cientificidade adaptados aos seus contextos de enunciação, o que se traduz, necessariamente, por códigos conceptuais adequados (e por vezes, confesso, algo herméticos, embora tal derive amiúde da necessidade de rompermos com as linguagens espontâneas). Vamos então aos inúmeros pontos de dissenso.

 

1.Afirma Pereira que não é lógica a minha afirmação de que os emigrantes qualificados para França sofrem de um acumular de invisibilidades (uma das razões utilizadas para justificar o meu interesse pela questão), já que os não qualificados “são bem mais invisíveis no espaço público”. Não desejo entrar aqui numa guerrilha de hierarquias de visibilidade… Mas é objetivo que rareiam ainda os estudos científicos (que não os debates, artigos e programas televisivos, esses muito abundantes) sobre os primeiros (qualificados), ao invés da muita e boa literatura científica produzida sobre os segundos. E que o estudo destes fluxos cuja intensidade recentemente aumentou (apesar de sempre ter existido, como Rui Pena Pires não se cansa de afirmar)não é particularmente acarinhado pelos poderes instituídos (como de resto ficou patente na rescisão do contrato do Governo de coligação com o Observatório da Emigração), na medida que pode ser interpretado como uma espécie de dedo apontado aos discursos de “país vencedor” e às orientações hegemónicas das políticas públicas. Para mim, que fique claro, é tão importante estudar uns, como outros. Não tenho fascínios científicos de estimação, nem dívidas de classe a pagar ou exotismos a explorar.Nãohátemas mais oumenos nobres para as pesquisas sociológicas, como há tantasdécadas nos ensinaram os interacionistas simbólicos da Escola de Chicago. Mas refuto, por exemplo, a ideia de que os não qualificados contactem menos com as autoridades portuguesas. Todas as evidências recolhidas no trabalho de campo apontam para uma muito maior autonomia (ligada à posse de recursos superiores) face aos serviços da embaixada, dos consulados e dos bancos por parte por parte dos qualificados, escapando, assim, aos registos oficiais sobre a sua passagem.

Eu próprio refiro na introdução do meu livro: “é verdade, ainda, que os mass media parecem ter esquecido os “velhos” emigrantes, num encantamento pelo que é “sexy” (jovem, escolarizado, urbano e cosmopolita)” (Lopes, 2014, p. 1). Mas, insisto: existe por parte das ciências sociais, e em particular da sociologia, uma tendência para privilegiar o estudo dos grupos e classes sociais mais polarizados, esquecendo, com frequência, as camadas médias ou em trânsito de classe. De certa forma, esta pesquisa é um modesto contributo para colmatar essa lacuna persistente.

 

2.Afirma ainda Pereira que os resultados eram previsíveis, nomeadamente quando chego à conclusão de que “a emigração surge como uma oportunidade para obter um melhor salário, fugir à precaridade e ver as suas qualificações profissionais reconhecidas” (Pereira, 2015, p. 669). Mas essa, meu caro Victor Pereira, é uma das sinas da sociologia: às vezes tem mesmo de mostrar que o que parece é, para que não se diga que é outra coisa, como um dom, um espírito, uma vocação, uma natureza, uma essência, uma predestinação, um destino ou uma fatalidade. Mostrar pela prova o que antes era apenas impressão, ainda que pareça evidente a uns quantos, é um poderoso utensílio contra as mitologias dos poderes dominantes. Tenho pena que fazer ciência não seja às vezes muito excitante. Mas Pereira opta, curiosamente, por não realçar nenhum dos aspetos menos expectáveis do estudo. Por exemplo, que, ao contrário dos anteriores fluxos de emigrantes não qualificados, não existe, na antecipação de futuros prováveis, a expetativa do regresso, Alfa e Ômega do tradicional imaginário da emigração portuguesa. Ou a feminização da amostra. Ou o impacto da crise. Ou os processos sociais de “naturalização” da mobilidade. Ou, ainda, que, para além da busca de satisfações extrínsecas (salário, carreira), se prova a importância da mobilização de valores intrínsecos (autonomia e satisfação no trabalho). Compreendo bem que o seu olhar disciplinar, específico e situado, como o meu, que sou sociólogo e não historiador,nãomobilize as grelhas deleitura que captam essas dimensões. É talvez uma questão de perspetiva.

 

3.Pereira dá mais um passo ao afirmar que o estudo é “principalmente descritivo e oferece poucas análises sociológicas”. É fácil e um pouco atrevido que o diga, à luz do que anteriormente mencionei (ele que é historiador e não sociólogo). Refere, ainda, que não aprofundo as questões de etnia e de género subjacentes às migrações femininas especializadas na saúde e nos cuidados: as enfermeiras portuguesas, à semelhança das filipinas, seriam mais desejadas por serem brancas, católicas e ­culturalmente próximas. Talvez seja uma boa pista para uma investigação que Victor Pereira queira realizar. Pela parte que me toca não o podia mesmo fazer, não somente por o estudo ser exploratório, com duração de um ano e 5 mil euros de apoio financeiro, mas sobretudo porque toda a lógica da pesquisa se centra nos percursos biográficos emigratórios e não nas representações dos utentes de saúde ou das empresas que contratam estes profissionais. Convém não esquecer que, mesmo que essa pista me pareça heurística, a ideia transmitida pelas enfermeiras de que são benquistas na sociedade francesa prende-se também com a estrutura da sua formação académica, em que certas questões antropológicas e sociológicas (relacionais) são abordadas. Mas tal não cabia no declarado âmbito deste estudo, que é a resposta a uma encomenda com um caderno de encargos preciso. Se quisesse, por exemplo, estudar os campos profissionais de enfermeiros ou engenheiros, deveria fazer uma pesquisa autónoma. Além do mais, pensar que é fácil chegar a estes indivíduos por intermédio das empresas de contratação temporária revela uma ingenuidade própria de quem faz uma economia das dificuldades de pesquisa de terreno em contextos de informalidade, nos interstícios da legalidade e do segredo.

 

4.Pereira afirma uma vez sem verdade. Cito (e mais do que citar, li e trabalhei) algumas pesquisas de Maria Ionannis Baganha. O gráfico da página 9 não refere (e poderia fazê-lo, porque essa questão é sobejamente conhecida para quem trabalha os Censos do INE) a subavaliação das saídas entre 1969 e 1974. Mas, ainda assim, vale pela evidência da inversão da tendência de abrandamento que se verifica na viragem do século XX para o XXI. A ausência de referência a estudos já clássicos sobre a situação social francesa face à imigração (que, de facto, poderia ter sido trabalhada) deve-se em parte à míngua de desenvolvimentos sobre a emigração qualificada.

 

5. Critica ainda Pereira o “nacionalismo metodológico” que perpassa pela minha pesquisa. Mas devo lembrar-lhe que trabalhei (e isso está bem presente nos “retratos sociológicos”) a perceção face aos franceses (e vice-versa) ou a relação com as autoridades gaulesas. Todavia, este é, acima de tudo, insisto, um estudo sobre socialização e percursos biográficos, de forma a entender como se criam disposições migratórias e como se aciona, num dado momento e no cruzamento de vários contextos, a decisão de sair do país. A questão da integração política joga ainda muito pouco nos discursos e representações destes portugueses porque acabaram de chegar, empurrados pela crise. Pereira gostaria que eu fizesse um estudo guiado pelos quadros de referência da história contemporânea. Não é o caso, por formação e opção.

 

6.Pereira não domina o conceito sociológico de geração, nem a sua constante tensão (desde Adérito Sedas Nunes e o uso da “geração social” para estudar a população universitária, até Machado Pais com a unidade e a diversidade das “culturas juvenis” ou o meu próprio trabalho de 1996 sobre as divisões simultaneamente estruturais e quotidianas na juventude estudantil liceal) entre tipicidade e fragmentação por classe, género, etnia… Pressupor abusivamente a homogeneidade ou a heterogeneidade é um golpe de força teórico. Estudar empiricamente essa tensão é ofício da sociologia. Aliás, nunca reifico qualquer homogeneidade em detrimento de linhas de fratura. O próprio título do livro Geração Europa? consagra o primado da interrogação. Da mesma maneira, ao propor uma “comunidade de comunidades” para dar conta dos diferentes modos de relação dos emigrantes com o país de origem, estou a insistir nesse conflito e diversidade. E refiro, expressamente, que me situo no plano das comunidades imaginadas (bem distintas, como decerto saberá Pereira, das comunidades reais constituídas pelas interações em situação de co-presença), na senda de Benedict Anderson. Que se ultrapasse a visão meramente objetiva ou institucional dos conceitos é um desiderato que pode ser trabalhado pelas ciências sociais e mesmo pelas políticas públicas anti--reducionistas.

Eu não digo, por isso, que a atual vaga de emigração qualificada é mais europeia do que as anteriores (de novo a obsessão de Pereira pelo pensamento hierarquizado e sua permanente “dívida” para com os emigrantes não qualificados…). Eu demonstro, isso sim, que as representações do espaço europeu e as perceções de mobilidade constituem-na de uma forma distinta, alargando o seu campo de possíveis.

Da mesma forma, Pereira não conhece e/ou não entende o conceito de transições para a vida adulta (multifacetadas: no trabalho, na família, na sexualidade) e de como essas transições se têm arrastado por períodos de moratória que configuram uma instalação em espaços-tempo precários (o estágio, a bolsa, a intermitência intensa entre emprego, subemprego, desemprego, etc.). Esse habitar no provisório forma uma cultura de precariedade bem diferente (insisto: distinta, não necessariamente pior!) da situação e perceção prévias à implementação do Estado-Providência, onde as transições, ainda que duríssimas, eram bem mais curtas e lineares (não havia esse “luxo” chamado juventude…). Refiro-me, evidentemente, à lógica insinuante do capitalismo pós-fordista de acumulação flexível, que escolariza, segmenta, balcaniza e precariza a força de trabalho para aumentar a mais-valia e a dominação.

 

Em suma, em termos epistemológicos prefiro sempre a procura da relação à submissão a um centro soberano, a busca das tensões a pares dicotómicos ou as interseções (entre biografia e contexto ou entre tempos assincrónicos) a uma insistência em hierarquias científicas ou reducionismos mais ou menos lineares. Onde Pereira vê falta de questionamento ou descritivismo, eu proponho que se encontre um prudente (e exploratório) vaivém entre teoria e empiria, sem a prioris de agendas pré-formatadas por olhares disciplinares e disciplinados por uma clara economia de auto-objetivação participante.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LOPES, J.T. (2014), Geração Europa? Um Estudo Sobre a Jovem Emigração Qualificada para França, Lisboa, Mundos Sociais.         [ Links ]

PEREIRA, V. (2015), Recensão “Geração Europa? Um Estudo sobre a Jovem Emigração Qualificada para França, de João Teixeira Lopes, Mundos Sociais, 2014”. Análise Social, 216, L (3.º), pp. 668-671.         [ Links ]

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